segunda-feira, 22 de maio de 2017

Doutorzeco

O muro de arrimo do "doutorzeco"

Cláudio de Moura e Castro – Revista Veja – Abril 2013

  A notícia trágica desaba sobre uma universidade séria: levou bomba no MEC o curso de engenharia civil!
  O assunto justifica infindáveis elucubrações, mas me detenho apenas em um aspecto, por ser uma birra minha, por décadas.
  Na justificada ânsia de consertar, foram trocados seis professores.
  Não tinham mestrado e foram substituídos por doutores em tempo integral, como gosta o MEC.
  Com isso, atendesse a uma das exigências para reabrir os vestibulares.

  Esse remendo está no epicentro de um dos maiores equívocos do MEC.
  A legislação do ensino superior veio da cabeça de cientistas — alguns notáveis.
  Por isso, as atividades clássicas de pesquisa nas áreas científicas foram corretamente tratadas e valorizadas.
  Lastimavelmente, esse marco legal ignorou a existência, dentro do ensino superior, de cursos profissionais e de serviço.
  Em engenharia, direito, administração, pedagogia e outros é necessário somar bons professores nas disciplinas de formação teórica aos das aplicadas.
   E, de quebra, cumpre oferecer a experiência prática de aplicar.

  Em um livro clássico (The Reflective Practitioner), D. Schoen fala das ruminações não verbalizadas dos profissionais ao realizar o seu trabalho.
  São descritas como experiência tácita, "teoria do olho clínico", ou o interstício não codificado entre o que descreve a teoria e o ato de fazer.

  Daí que:

1) adquirir essa metalinguagem é pane inseparável da profissionalização.
2) apenas verdadeiros profissionais podem transmitir essa dimensão do profissionalismo.
3) leva tempo para formar um profissional.

  Um belo exemplo é dado pelo programa de um hospital australiano que, por seu sucesso, foi replicado pelo mundo afora.
  A direção do hospital notou castro que morriam três quartos dos pacientes por parada cardíaca.
  Identificando o problema como demora no atendimento, criou uma equipe sempre pronta para agir tão logo ouvisse pelos alto-falantes o termo "Code Blue".
  Com isso caiu a mortalidade, mas apenas alguns pontos porcentuais.
  Nova providência: qualquer médico ou enfermeira poderia acionar o Code Blue, mesmo que os sinais vitais do paciente estivessem normais.
  Ou seja, se o jeitão estivesse suspeito, mesmo sem os sintomas clássicos poderiam soar o alarme.
  Surpresa!
  A mortalidade caiu para menos da metade.

   Moral da história: o que salva os pacientes é o que não está nos livros de medicina, mas na "teoria da prática".
  É o "olho clínico".

  O próprio médico não sabe explicar por que chegou a tal diagnóstico, mas intui que algo está errado.
  Os novatos precisam adquirir tal experiência, mas apenas quem a tem pode oferecê-la.
  Portanto, cada disciplina requer professores com o perfil talhado para ela.
  Do professor de cálculo, nada melhor do que exigir um doutorado.
  Mas o professor que ensina a construir prédios deveria ser alguém que acumulou anos no canteiro de obras.
  Se houvesse doutores com essa experiência, tanto melhor.
  Mas não há, pois doutorados preparam para a pesquisa e para a universidade.
  Se o MEC melhora as notas de quem substitui verdadeiros profissionais por jovens doutores que nada sabem de construir prédios o resultado desse equívoco é grotesco.

  Premia quem ensina uma profissão que não tem apenas leu livros e escreveu papers.

  Os professores dispensados, com mais de 35 anos de experiência, tinham escritório de engenharia respeitado e prestavam consultoria.
  E obviamente, ensinavam em tempo parcial, pois não poderiam abandonar sua empresa.
  Para os alunos, isso é ótimo, assegura que o professor ensina a engenharia que se pratica de verdade.
  Para o MEC, tempo parcial perde ponto.
  Não deveria ser o contrário, perder ponto se fosse tempo integral?

  Igualmente ausente das políticas públicas é a valorização da competência na sala de aula.

  É a didática do cotidiano, adquirida com a experiência.
  No caso, professores consagrados e estimados pelos alunos foram substituídos por jovens que ainda vão aprender a dar aula.
  Péssimo para os alunos, mas não comove o MEC.

  Conversa de corredor na universidade: "Pois é, tiraram nossos engenheirões e os substituíram por "doutorzecos" que jamais fizeram um muro de arrimo".


  Quem tem razão, os alunos ou o MEC?

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